Resenha

Virna Teixeira em Trânsitos

O modo como a poesia se configurou como sistema – ou se formou, diria Antonio Candido – no Brasil abre espaço para alguma proposta que se relacione, para além da “queima de capital poético” (Mário Faustino), à tradição? Senão, o que é possível propor hoje em termos de poesia? Qual o peso da tradição, ou quais as responsabilidades que lhe são atribuídas?

Por ocasião do Simpoesia (2º Simpósio de Poesia Contemporânea), estive presente ao lançamento de Trânsitos, de Virna Teixeira, no Jazz nos fundos (SP). O simpósio contou com a presença de poetas e editoras brasileiros e estrangeiros. A curadoria ficou por conta da autora citada.

No Jazz nos Fundos, o som do Gabriel Santiago Jazz Quintet (Gabriel Santiago na guitarra, violão e piano, Russel Haight e Simon Wiskowski nos saxofones, André Santos no contrabaixo e Wayne Salzmann ii na bateria) rendeu um arranjo de Baden Powell digno de nota. Também vale anotar a realização, pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo[1].

Adiante, seguiremos colados ao que Trânsitos nos oferece como proposta. E se essa é uma proposta de leitura condizente, em algum sentido, com os resultados anteriores de nosso cânone. Com isso, talvez seja possível clarear algumas relações da obra com o idioma, a linguagem e a poesia propriamente dita.

A PROPOSTA

Trânsitos faz parte da série Caixa Preta, organizada por Cláudio Daniel para a Lumme editor. A ideia, conforme consta no livro, é publicar “autores brasileiros que realizam uma pesquisa poética imaginativa e com artesanato de linguagem”. Soma-se a isso o desejo de “apresentar ao leitor textos inventivos, inquietos, enfim, em estado de poesia”. Essa informação vem com uma epígrafe de Jorge de Lima: “A proporção é desmedida”.

Virna tem outros dois livros, ambos publicados pela 7 Letras: Visita, de 2000, e Distância, de 2005. Enquanto nos primeiros ela explorou um estilo mais conciso, no último, buscou “uma linguagem mais solta”.

No prefácio, escrito por Claudio Daniel, lê-se:

Esta leitora de Ana Cristina César e João Cabral de Melo Neto sabe que a poesia move-se em espiral entre a emoção e a inteligência, o real e o imaginário, a sonoridade e o silêncio, numa aventura da linguagem ou irrupção de signos. Ela não necessita de mais do que onze palavras (sendo três artigos) para criar uma sequência quase cinematográfica: “pequeno, o/ frágil/ corpo/ soluça/ vermelha,/ a flor/ entre os/ dedos”, que recorda a objetividade de poetas como William Carlos Williams, a capacidade de síntese do haicai japonês e os recortes fílmicos de Jean Luc Godard. O que chama a atenção em Distância, porém, é a transição do minimalismo para outras formas de dizer, especialmente na última seção do livro, chamada “Entre paredes”. Encontramos aqui algumas peças que se aproximam da prosa, expandindo a música verbal, agora menos solista do que camerística, como numa peça notável que começa com estas linhas: “Eu estou morrendo, ele disse/ O lápis verde escorrendo sob as pálpebras./ O que é ilusão nas horas transitórias./ Neste barco náufrago, atrás desta murada”. Temos aqui quase uma antecipação do livro Trânsitos, seu terceiro título, que radicaliza as experiências anteriores, mostrando a capacidade de renovação da autora.[2]

As referências a João Cabral de Melo Neto, William Carlos Williams, ao haicai japonês, ao minimalismo e à renovação não podem passar alheias ao conceito referendado por Ezra Pound de “condensação” (dichten = condensare)[3], no qual entende-se que boa literatura é aquela carregada de significado até o máximo grau possível. Parece ser disso que trata Claudio Daniel ao mencionar as poucas “onze palavras” de Virna.

A metáfora da viagem também é retomada como símbolo para “a transitoriedade e mutabilidade do homem e do mundo”[4]. Vide a sugestão de temas que incluem essa imagem na concepção da obra: “o percurso geográfico, a jornada interior, no âmbito das sensações e images/stories mentais, e sobretudo o trânsito da linguagem, os movimentos da palavra poética em diferentes formas de estruturação.”[5]

OS POEMAS, A EDIÇÃO, O VERSO

O livro abre com “Hydra”, precedido por uma citação de Lee Harwood:

And that thin luminous strip on the horizon
where sea and sky meet, where they fow
into one another

Com “Hydra”, o discurso descritivo mescla-se a temas mitológicos e à fantasia: “onde o monstro/ marinho?”, “tinha nove cabeças/ a serpente”, esta com destaque em itálico mesmo. Entretanto esse contato entre uma poesia do cotidiano de viagem com uma tradição clássica, tendendo para o fantástico, é deixado de lado ao longo do livro. Da mesma forma, os questionamentos que isso pode suscitar. No máximo, encontramos uma ou outra referência esporádica, como “Titan”: “mensageiro do submundo/ mercúrio”.

Outro ponto deste primeiro poema é que ele é divido em duas partes, sendo a segunda uma explicitação de um caráter subjetivista que toma conta do texto: “Na colina, balidos/ despertam/ meus pensamentos./ As hidras internas/ se recolhem.” Essa transição de images/stories pastoris para um certo narcisismo também seria um bom caminho a ser explorado no percurso da poesia de Virna. Entretanto, com os demais poemas dessa primeira parte, a sensação que se tem é de estar olhando para um álbum de fotografias, com recortes das “terras baixas”, Stockbridge, Londres, Vegas, México, paisagens e situações turísticas.

Na segunda parte, “patinando no gelo”, com citação de Maria-Mercè Marçal – “como a minha sombra, nua atrás do espelho gelado” – o clima é, como essas referências já sugerem, de frieza.

O campo aqui explorado é a fotografia, em especial, a obra de Nan Goldin, que, em 1968, aos quinze anos, comemorava sua primeira câmera. O universo escuro e sujo, mas não sem brilho, das images/stories de Goldin lembram os cenários das canções de Lou Reed. O sexo, o suor, as drogas, são explorados, em Trânsitos, sob uma ótica mórbida.

Há frio, feridas, ataduras, traumas, memórias felizes que se desfazem, espartilhos, crematórios, corpos adormecidos, primeiros socorros, mofo, dopamina, sudorese, midríase, excesso, Nick Cave, naufrágios, resíduos, afogamento, esgotamento, luto. Entretanto, esse turbilhão de cenas hospitalares e submundanas não resgata nada do glam ou ironia contida na representação de minorias dentro da estrutura do mercado.

A visualidade continua em “Traveling”, terceira parte, alusiva ao cinema e ao clássico movimento da câmara na dolly. A brincadeira com o perigo de “patinando no gelo” ganha aqui um tom responsável e moralista, em trechos como “não há adversários – nem drogados/ felizes”.

O intertexto com filmes é constante, mas as referências ao recurso cinematográfico que dá nome a esta parte do livro, sua transição para a palavra, inexistem. O mais próximo que chegamos disso é a sequência de “À flor da pele”: “em câmera lenta/ descia as escadas/ sinuosa seda/ do vestido”, num dos momentos em que esse livro apresenta lampejos de potência imagética.

A última parte, como o título “impromptus” sugere, lembra uma inclusão de improviso. Os poemas trazem algumas características dos outros trabalhos de Virna, medidas “menores”, discursos mais concisos.

Embora a comparação pareça cruel, não é de todo descartável o cotejo de um poema como “quadro” e qualquer dos poemas sevilhanos cabralinos. Ao menos valeria para mostrar como a vocação para uma medida menor podia ser explorada nos idos do modernismo.

A obra da poeta explora a versificação livre, consagrada no Brasil com o modernismo. A base rítmica é mantida pela repetição de versos de medidas iguais, geralmente os últimos de cada estrofe, e algumas rimas aleatórias.

Um exemplo de boa música em versos discutíveis: “É branco o silêncio. Estas paredes/ onde pairam palavras, suspenso” (note o uso da cesura, da rima toante e do enjambement). A sintaxe, linear, transita sem motivo aparente entre o respeito às normas e a subversão, como no caso da pontuação neste excerto: “labirinto/ janelas, claustro.” E um exemplo de dístico de muleta: “tarde de verão, parada/ como uma Villa na Toscana”.

Em “patinando no gelo”, temos, por completo, uma ruptura com o verso. Disse T. S. Eliot que é melhor escrever em prosa tudo que é possível escrever em prosa. Talvez fossem melhor aproveitados se esses poemas fossem publicados em formatos de microcontos ou minidescrições, a menos que consideremos verso o recorte de frases em linhas relativamente proporcionais.

Da mesma forma, não há sentido em forçar um enjambement para tentar extrair um ritmo ausente, como em: “Peter Mullan é um junkie/ de tatuagens desbotadas/ desempregado/ nas ruas de/ Glasgow”. Soa artificial.

O LUGAR-COMUM, “O PERCURSO GEOGRÁFICO”, “A JORNADA INTERIOR”

Em Trânsitos, a autora faz uso ostensivo do lugar-comum, mas diferentemente das incursões da Fábrica de Andy Warhol, dos textos de Oswald de Andrade e mesmo das rupturas dadaístas, esse uso não causa choque, não provoca reflexão.

Voltemo-nos a um poema no qual o impressionismo é acentuado, “Primavera em Londres”:

A ponte que se estende, verde e dourada. Hammersmith.
Sobre a grama da St Paul’s, rapazes de branco
jogam cricket.
Nesta estação brotam blossoms
nas árvores de Wimbledon
rosa-pálidos.
Logo um carpete verde se estenderá no metrô
e pelas ruas, passearão tenistas.

Que conclusões podemos tirar? Que, na primavera, os londrinos praticam esportes? Outro exemplo: “A luz tênue/ ao entardecer/ outono”. Concordemos que, se a autora considerou a necessidade de explicitar a estação do ano, é porque a imagem anterior não deu conta do recado.

E se a luz tênue ao entardecer não foi suficiente para simbolizar o outono, o que ela está fazendo ali? A simples palavra “outono”, então, não seria suficiente? O uso dessa imagem não torna o texto mais “poético”. Torna-o mais descritivo e redundante.

Haroldo de Campos descreve a aplicação do lugar-comum na obra de Oswald nos termos de uma apropriação irônica:

A contínua transliteração do clichê idiomático, através de uma operação de estranhamento, por força da qual “os lugares-comuns se transformam em lugares-incomuns”, participa também deste processo (assim “Agente”, “Música de manivela”, “Ideal bandeirante”, “O ginásio”, “Reclame”, “Aproximação do capital”, “Anúncio de São Paulo”, entre outros); no que toca à “reificação” das relações amorosas, emparelhadas com um “excelente jantar” ou convertidas num “deve/haver” mercantil, mas sempre balsamadas do viscoso sentimentalismo pequeno-burguês, eufemístico e tutelar.[7]

Já no livro em questão o clichê aparece de forma descompromissada, um lugar-comum mesmo, como se visitássemos a linguagem a turismo. E esta parece ser a abordagem do tema da viagem na obra, no sentido de turismo. Não da “eterna aventura”, como diria Mário Faustino.

Uma inflexão interessante está na antítese entre o objetivo e o subjetivo, suscitada logo no primeiro poema do livro. Esse movimento também pode criar uma tensão fértil para a proposta de “transitar”, justamente nesse confronto do ser com o cosmo e com os parâmetros do real, da existência.

Para retomarmos Mário Faustino, esse conflito foi responsável por gerar toda uma poética e uma política de criação por meio dos vínculos entre vida e linguagem. Mas Mário trabalhava sob a tutela da crítica norte-americana para sustentar sua visão do artista como “antena” de seu mundo e de seu tempo. Essa proposta começou a ser sistematizada em O Homem e sua hora, de 1955, sobretudo em “Vida toda linguagem”.

DESMEMÓRIA

Visita é “um conjunto de textos breves que descrevem suas viagens, leituras e experiências pessoais”. Em comparação com Trânsitos, nesse ponto, esta obra não transita, com o perdão do trocadilho.

São criadas relações com o cubismo, com técnicas de fragmentação e com outras artes, ou mídias, embora todas as citadas estejam relacionadas com o estímulo visual (videoclipe, fotografia, cinema e artes plásticas). Mas essa submissão do áudio ao visual é mais um sintoma cultural que uma particularidade da autora.

A única crítica que lhe cabe nesse sentido está não no diálogo com outros formatos, mas em fazer isso por meio da prática de uma arte musical (entre outros atributos) com certa desatenção.

Se a proposta versificada de Virna escorrega no ritmo, temos aí um problema mais performativo que performático, de solução menos complicada. De qualquer forma, antes de questionarmos o sucesso de suas escolhas, é preciso verificar se realmente foi feito o que se disse estar fazendo.

De modo geral, como vimos, os textos de Trânsitos não se mostraram “inventivos”, “inquietos” e “em estado de poesia”. Não possuem “artesanato de linguagem” e não possuem uma “pesquisa poética imaginativa”. Não cumprindo com a proposta da série Caixa Preta.

Se erram na execução, entretanto acertam na proposta. Por isso não podemos afirmar que o livro não traz elementos interessantes ou que não leva a alguma reflexão. Trânsitos levanta questões, embora muitas permaneçam aqui sem resposta. Ele tem uma proposta, vinculada à noção de movimento e à literatura de viagem, e, com isso, remete a caminhos da tradição.

Sobre a execução propriamente dita, o título do livro abre espaço para mais uma condição: seu caráter transitório. A “poesia” contida ali não fica por muito tempo na memória, esvai-se com a própria leitura. Entretanto, esse tom desengajado e a-histórico pode ser lido como um efeito da estrutura de produção do mercado.

Arte não é sintoma, mas o livro de Virna parece ser, de uma estrutura de legitimação da arte contemporânea, senão da dissolução dos valores modernos.

ALGUMA HISTÓRIA DA LITERATURA

Iumna Maria Simon aponta para uma pacificação do horizonte poético no Brasil com o encerramento do ciclo utópico da poesia moderna e uma consequente desconfiança radical na capacidade de atuação dos sujeitos como agentes transformadores da linguagem e da sociedade.

Com isso, o panorama atual apresenta um trânsito gratuito e irrestrito de estilos e correntes, uma vez que os radicalismos social, dos anos 1920, relativamente formal, dos anos 1950, e expressivo, dos anos 1970, “se desmancharam no ar”:

Por paradoxal que pareça, agora a meta é revalorizar a competência lírica, o cuidado artesanal, uma pretensa elevação da dicção, baseada na reapropriação de estilos anteriores datados, retomando-se a ideia mais edificante de poesia como forma e conteúdo – como se a literatice tivesse agora outro fôlego, podendo até revitalizar tradições que pareciam superadas, como o beletrismo e o preciosismo verbal.[8]

Em sua busca pelo “novo” em poesia, Iumna traça algumas “estratégias” que circundam um comportamento pacífico, tranquilo, de ação:

a) é a liberdade de circular por todos os movimentos e propostas anteriores, sem restrições e sem dramas, em jogos de linguagem que atropelam as historicidades. Multiplicaram-se os tradicionalismos, todos modernos, em cujas opções estéticas atenuadas identificamos a aparência de exigência formal e riqueza de tendências – fenômeno que se impôs com a retradicionalização frívola da poesia nos anos 80, contra o rebaixamento do poético e o desleixo formal da poesia marginal; b) é a identificação com os rótulos modernos, sem as inquietações e os sentidos críticos de origem, rótulos estes quase sempre traduzidos em falsas continuidades ou superações pós-modernas; c) é a integração tranquila no horizonte do mercado, rendição que em muitos casos passa por consciência crítica.[9]

Hoje, Virna, como podemos perceber, insere-se nessa liberdade de circular sem restrições e dramas. Seus textos comportam certa dose de tradicionalismos, como o tema da viagem e o próprio conceito de “trânsito”; sua prática identifica-se com os rótulos modernos, muitos dos quais citados no prefácio do livro, e integra-se de forma festiva, como foi o Simpoesia deste ano, no horizonte do mercado.

Iumna deixa ainda uma série de questões, entre as quais, se uma retomada do ideário construtivo, “sem as abstrações universalistas e o provincianismo concretistas”, não daria um bom embate contra o “ambiente caótico do mundo desregulado”. Ou, a liberdade intentada com a poesia marginal não poderia se opor ainda à tirania da sociedade?

Diante disso, pergunto se também não daria, senão um embate, algum dízimo para a tradição um pouco de constância – talvez um viço de infância (em contraposição ao mesmo Jorge de Lima desmedidamente transitório da folha de rosto da série Caixa Preta) – como outra via submersa nestes tempos de crises estáveis suplantadas pelo consumo acelerado.

Andy Warhol lembra que todos temos nossos quinze minutos. Também a arte atual. No desabafo de João Adolfo Hansen: “Acho justo que essa sociedade tenha a arte que merece”.

(publicado originalmente na revista Sibila em junho de 2009)

[1]. É preciso rever o que se oferece como educação e cultura pelos órgãos públicos, em todos os níveis.

[2]. Virna Teixeira, Trânsitos, São Paulo, Lumme, 2009, p. 16.

[3]. Ezra Pound, ABC da literatura, 10a ed. São Paulo, Pensamento-Cultrix, 2003, p. 40.

[4]. Virna Teixeira, op. cit., p. 13.

[5]. Ibid.

[6]. Coyote – Revista de Literatura e Arte. n. 8, Londrina, verão 2003.

[7]. Oswald de Andrade, Cadernos de poesia do aluno Oswald (Poesias reunidas), São Paulo, Círculo do Livro, s/d, pp. 18-9.

[8]. Iumna Maria Simon, “Considerações sobre a poesia brasileira em fim de século”, Novos Estudos Cebrap. n. 55, nov. 1999, p. 35.

[9]. Ibid., p. 36.

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