Conto

O herege

Por ocasião do falecimento do pai, o filho resolveu aproveitar a situação para expor aos conterrâneos saudosistas certas vontades que o falecido deixara em carta póstuma. Tal carta, para espanto dos demais parentes do morto, havia sido mantida em segredo durante anos pelo filho e trazia instruções para a realização do funeral de seu autor que pouco influíram no andamento padrão da cerimônia, mas que deixavam ao pródigo a responsabilidade pela foto e pelo epitáfio que ilustrariam a lápide.

Não por vontade do rapaz, pouco confiável por causa de suas habilidades em manter o nome da família sujo na praça e nas mesas de conhecidos menos amistosos, nem por vontade do morto, dedicado que fora a ilusões mercantis que sempre estimularam a carência de produtos básicos para a alimentação e higiene mensal da família; na verdade, somente os parentes próximos foram ao enterro, e houve até quem dissesse que a viúva sequer chorou por detrás das lentes escuras, mas, enfim, consta que, não por vontade deles, mas por respeito à entidade celebrada na ocasião, enterraram o morto segundo as especificações contidas na carta.

E não foi sem alguma relutância, embora silenciosa, da consciência coletiva que, no dia seguinte, o filho apresentou a lápide, a foto e o epitáfio juntamente com a carta que comprovava a fidelidade do trabalho realizado. E não foi sem protesto, embora discreto, que todos os parentes se encontraram diante de um imenso espaço em branco que tomava toda a área destinada à gravura do rosto do falecido. Entretanto, alcançando o limite de tolerância dos mais exaltados, o epitáfio contava com a seguinte inscrição: “Não me acendam velas, à noite a própria morte me revela.”

Seja o último favor, seja o mau gosto da rima óbvia, o desgraçado insistia, mesmo morto, em fazer pilhéria da honra que a muitas custas aquela família fantasiava. Pois não tivera ele a devida austeridade, abriram-se as portas ao desabafo. Não ganhava bem, não tinha amigos ricos, vinha da família pobre, traíra a mulher indiscretamente, insistia em fazer a caçula aprender futebol, não incentivava a leitura da pequena, não impunha bons modos ao filho e tinha um rosto desproporcional, com um olho e uma orelha mais baixos que os do lado oposto, que esfarelava em caspa.

Posto em júri popular, convenhamos que a feiúra justificaria a indisposição constante da esposa toda noite que ele deixava de inventar compromissos noturnos. Mas não era apenas isso, mulher que se preze, convenhamos novamente, precisa de jóias, empregadas, amantes, e um marido com o qual ela pudesse se orgulhar de andar braço-dado pelas quermesses do padre Luiz; coisas que não se pode comprar com crediário.

Tardou, o filho da puta.

E pior, demorou a viúva a ceder, mas confessou: brochava sempre, o ingrato. Coisa que justificaria até um processo de indenização por danos morais contra a família do presunto, especialmente a mãe por ter dado à luz a tamanha ameaça social.

E eis que se poupou a burocracia, mas não a justiça que levou a esposa a se colocar em ataque verbal contra a sogra diante de todo o resto de ambas as famílias. E, acima de tudo, diante da foto em branco na lápide. Óbvio, era tamanha a vergonha, que o monstro se escondia das mãos vingativas da derradeira. Pois ela haveria de encontrá-lo nas profundezas mesmo sem um retrato de referência: bastava procurar por alguma fonte nova de desordem no além.

Posto que até no mundo dos vivos aquele pérfido ainda causava problemas. O mais imediato: certamente as visitas amorosas que a esposa concedia passariam a ser remuneradas. O que era pouco perto do escândalo de um marido que não dera a ela a vida que lhe havia prometido. Pouco perto das cobranças da funerária que insistia em duplicar os valores pelo fato do túmulo se encontrar rigorosamente no centro no cemitério, bem em conformidade com o ego do fétido. Enterrassem-no no lixo! Mas a vaga havia sido encomendada pelo próprio morto muitos anos antes. Provavelmente na mesma época em que escrevera a carta…

Pela madrugada, uma luz forte vinda do poste de iluminação central do cemitério criava uma sombra imponente da capela mais antiga do lugar que cobria quase a totalidade da lápide daquele morto. A sombra terminava como termina uma capela, com uma cruz, exatamente no espaço destinado à foto do morto.

Tal figura se apagava apenas com a chama da vela que a viúva pessoalmente acendia toda noite no túmulo, tornando ao branco o espaço antes desenhado pela sombra. Acendia, senão por amor, por compaixão ou por culpa, pelo temor de ser acusada de cúmplice da blasfêmia daquele herege.

Com o tempo, mudaram os postes de lugar e trocaram as lâmpadas por outras, mais claras e econômicas.

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